terça-feira, 26 de junho de 2012

Uma especulação sobre o fim da crise e a nova direção da história

As causas da crise financeira mundial já não têm mais segredos para a maioria dos observadores, inclusive para o homem comum de bom senso. Trata-se de um descolamento entre a órbita financeira especulativa e a órbita real, num processo iniciado nos Estados Unidos em 2007/2008 e que vazou para a Europa. Entretanto, as conseqüências da crise ainda estão obscuras para maioria das pessoas, mesmo porque muitos “especialistas” contribuem para a confusão ao tentar encaixá-a em modelos e paradigmas que se esgotaram, perdendo toda força explicativa.

A crise que estamos vivenciando não é uma crise cíclica convencional do capital. Também não é uma crise que tenha necessariamente como conseqüência a destruição do capital. É uma crise do liberalismo radical, ou do neoliberalismo. Os fundamentos doutrinários do sistema neoliberal, basicamente a idéia do Estado mínimo e da auto-regulação dos mercados, colapsaram espetacularmente. Não é que tenham sido derrotados por correntes oponentes. Foram derrotados pelas próprias contradições internas que expuseram a fragilidade básica da doutrina.

A mais extravagante dessas contradições foi a gigantesca mobilização de dinheiro público, trilhões de dólares nos Estados Unidos e na Europa, para prestar socorro a um sistema bancário “liberal” que, de outro modo, quebraria e levaria consigo o próprio capitalismo. Diante disso, como falar em Estado mínimo? Ou de auto-regulação? É claro que sempre haverá um retardatário ideológico disposto a pregar as virtudes do velho sistema. Não será levado a sério. Enquanto doutrina de reordenamento do mundo, o neoliberalismo está morto.

Mas o colapso não é apenas do neoliberalismo. Também no campo ambiental a doutrina caracteristicamente liberal de produção sem levar em conta efeitos sociais e ambientais entrou em decadência. Também colapsou, pelo menos entre nações nuclearizadas, o paradigma da guerra como continuação da política por outros meios. É que, entre potências nucleares, a guerra perdeu sua condição de instrumento racional dos Estados para defender seus interesses, conforme o enunciado clássico de Clausewitz. Finalmente, também no campo científico, em especial na Genética, a liberdade individual tende a ser limitada por um código de ética consertado socialmente.

Todos esses paradigmas que estão colapsando nada mais são que aspectos particulares de um paradigma mais fundamental, o da liberdade individual ilimitada, o qual, junto com a liberdade política, constitui o próprio alicerce da Idade Moderna. Desses dois paradigmas surgiram as correntes políticas que têm caracterizado a civilização ocidental (e agora mundial): segundo Bobbio, a liberdade como não impedimento, e, no plano oposto, a liberdade enquanto autonomia para participar da elaboração das leis às quais o homem livre se sujeita. Da primeira resultou o liberalismo econômico, da segunda o liberalismo (em sentido americano) político. 

O processo de que estamos participando nada mais é que a superação não revolucionária, porém incontornável, do liberalismo radical em favor da liberdade política. Não que os valores do liberalismo venham a ser totalmente negados. Muitos deles são fundamentais, porém serão limitados pelas liberdades políticas, em favor de um sistema regulado por um paradigma em nível superior que implique também os direitos sociais. É esse novo paradigma que devemos tentar vislumbrar. Mas antes que o velho caia por si mesmo e o novo se imponha também por si, teremos um período caótico, justamente o período que estamos vivenciando. Como se pode ver o que vem depois?

A melhor alternativa é observarmos as crises que se desenrolam à nossa vista e especularmos sobre os caminhos de sua superação. Assim, na ausência de um hegemon mundial – os EUA não o são, e obviamente também não o é a China -, a única saída para a superação da crise financeira, num mundo efetivamente globalizado, é a busca de soluções cooperativas num organismo coletivo como o G20. O mesmo se pode dizer da crise ambiental, das tensões geopolíticas e da busca de uma diretiva nas pesquisas genéticas, todos devendo subordinar-se a alguma autoridade coletiva agindo de forma cooperativa e coordenada.

Para melhor explicitar tudo isso, voltemos às contradições do capital. Um equívoco semântico leva muita gente a imaginar que o banco é a própria essência do capitalismo. Não é. A essência do capitalismo é o sistema produtivo, do qual o sistema financeiro é apenas um auxiliar. Assim, para salvar o capital, não é nenhum despropósito a estatização do sistema bancário, como na China e na Índia, e em boa parte no Brasil. O banco grande demais para quebrar está destruindo o sistema bancário de segunda linha nos Estados Unidos e na Europa, e acabará por entrar em contradição direta com o capital produtivo. O sistema político acabará percebendo que, para defender este último, o primeiro deverá ser sacrificado. 

Isso significa que, se tivermos paciência, a democracia, entendida como liberdade para condicionar o liberalismo radical, nos levará inexoravelmente a um novo paradigma de relações internas e internacionais, o paradigma da cooperação. Lamento que isso não se encaixa perfeitamente nos modelos de lutas de classe convencionais, mas acho que o mundo mudou alguma coisa desde Marx. Julgo que a busca de um melhor estado de bem estar social para os mais desfavorecidos não precisa passar necessariamente pela luta de classes radical e pelas revoluções armadas, mesmo porque elas seriam quase tão destrutivas no plano nacional quanto as guerras entre paises industrializados avançados, no plano internacional.

Texto de J. Carlos de Assis -  Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, junto com o matemático Francisco Antonio Doria, do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, pela Civilização Brasileira. Esta coluna sai também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.


Fonte: Agência Carta Maior